Acaso e rigor
(ou da alquimia pictórica de Manoel Veiga)
(ou da alquimia pictórica de Manoel Veiga)
por Adolfo Montejo Navas
Publicado no catálogo da exposição individual no Museu Murillo La Greca, Recife PE, 2007.
A esse extremo da pintura que se reinventa a si mesma na contemporaneidade pertence a poética de Manoel Veiga. Como todo artista plástico que se inscreve em um suporte tão histórico, as estratégias de conceitualização e atuação dizem quase tudo e são feitas no limite do gênero. Sobretudo quando, assim como há uma pintura que migrou para outro registro –disfarçando-se ou não–, há também uma arte que re-lembra/lê mimeses e códigos representacionais da pintura, sendo ambas as vias de estreitas semelhanças. Não é o nosso caso. Manoel Veiga se instala no âmbito atávico da tela para utilizar procedimentos que são também formulações de uma física-química estética, ou melhor, de uma alquimia pictórica que vincula o acaso ao rigor. E que parece partir de um leitmotiv já estabelecido por Malevitch: “devem ser criadas novas relações de cor, baseadas no que a cor pede, e também a cor, por sua vez, deve passar de mistura pictórica para unidade independente, estrutura na qual seja ao mesmo tempo individual em um ambiente coletivo e individualmente independente”. Deste ponto de partida, já entendido como procura, insere-se esta nova forma de reavivar o campo da abstração na pintura, que já tem a sua memória cultural estabelecida, mas não fechada. O que significa agora mostrar o processo e a forma de transmitir a experiência pictórica, refletir sobre a própria natureza da pintura. Há portanto algo meta-lingüístico, inevitável, que aqui se desenvolve no mesmo micro-cosmos da cor, numa pesquisa artística em que o gesto (com ecos contrapostos, orientais e pollokianos) tem uma transcendência derivada do movimento e da dinâmica energética que esta pintura inclui. A sua condição entrópica passa pelo grau de alteração e desordem no sistema costumeiro de cores, mas também pela incerteza informativa (ambígua) que translada na sua deriva. O que significa a incorporação de um grau respeitável de incerteza no resultado, nunca vista como erro.
Apesar da explicação esclarecedora do próprio artista sobre o seu processo no Caderno de trabalho (“variação de entropia é uma forma de medir”, “entropia não é medida do caos”, “difusão de energia é a força de ação, em química”), em toda esta formulação artística o estudo dos comportamentos da tinta, dos pigmentos, dos líquidos, da emulsão, da difusão, da dispersão, etc. é capital, e favorece outra dinâmica de atuação (a presença da água ecoa sutilezas de aquarela, outras nuances e registros). Assim, todas as operações induzem a pensar que se trata de uma poética cuja lei de gravidade é mais gravitacional, pertence a outro plano de ação estética. Aliás, nestas tintas acrílicas sobre tela ou papel, o espaço pictórico nunca deixa de ser também um espaço mental, no qual o branco do vazio diz muito. “Assim o vazio não é a nada. O vazio é o quadro” diz Zhang Shi.
Para nossa aproximação, as imagens conseguidas pelo artista refletem um regime instável de harmonia, um repertório visual aleatório que fica a salvo de leituras reducionistas ou dirigidas: a própria autoria mergulha na linguagem –essa outra voz mais alta. As manchas-estruturas-composições de Manoel Veiga transitam por uma cartografia própria (com filamentos e raízes fractais em estado de suspensão molecular). É um configurado corpus de alta densidade cromática e sintética, no qual o artista pode até ser tentado a explicar-se em suas anotações. Mas que nunca é suficiente. Por sorte. Pois a explicação não consegue apreender os resultados nem os processos. O campo ampliado, em aberto, de uma pintura onde acontecem mais coisas do que vemos.