Paisagens ínfimas, paisagens imensas – O projeto poético de Manoel Veiga
por Agnaldo Farias
Publicado no folder da exposição individual na Galeria Mezanino, São Paulo, 2015.
É curioso pensar que enquanto vamos vivendo submersos em nossos cotidianos previsíveis e genéricos, ignoramos os acontecimentos simultâneos, próximos e distantes, salvo aqueles que, a revelia da nossa vontade e desejo, são despejados pela mídia. Não pensamos no que está acontecendo agora, não pretendemos quase nunca saber o que acontece fora da órbita dos nossos interesses imediatos, porque, em primeiro lugar, é-nos simplesmente impossível reter a amplitude do tudo que, ao menos na aparência, compartilha nosso espaço e tempo. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade em Mundo Grande, nitidamente preocupado em dar conta da amplitude dos acontecimentos no mundo e consciente do fracasso desse intento
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
[...]
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
E o que dizer então de acontecimentos em escala sideral, das imagens que nos chegam das estrelas que já não mais existem, emitidas que foram há milhões de anos-luz? E da súbita consciência que o universo está em expansão? E de estarmos fixos pela ação da gravidade num planeta minúsculo que gira em torno de seu próprio eixo na vertiginosa velocidade de 1.675 km/h, que ainda se move ao redor do sol, a 107 mil km/h, o que é pouco se comparado à velocidade de rotação galáctica, que é de 810 mil km/h, tudo isso dentro da Via Láctea, em rota de colisão com a galáxia de Andrômeda, numa velocidade de 230 mil km/h? O que dizer? Bem, nada. Tudo isso parece tão distante, tão absurdo para nossa ridícula e mesquinha compreensão que nem vale a pena pensar. O mesmo vale para os processos ditos ínfimos, microscópicos (lembra-se quando em algum momento da infância lhe foi revelado que o corpo humano é 70% composto por água?). E que tal as bactérias, células, moléculas, átomos, partículas, e toda a infinita matéria que, segundo fomos recentemente informados, também é energia, cuja incompreensível coesão dá corpo a tudo o que há?
Talvez pense-se pouco, quase nada, ou nunca sobre temas dessa natureza porque eles nos dão uma medida mais aproximada da nossa importância, que é pouca coisa além de zero. Desagradável, não? Constatações como essa reduzem a pó a crença no individuo, e o valor desmesurado que hoje se dá ao próprio ego, a irrelevância das noticias que emitimos a nosso próprio respeito pelas redes sociais, é prova patética do desejo de compensação.
Não obstante, há muita gente ocupada em perscrutar o invisível, pesquisando, levantando, expandindo, a essa altura, a unânime e já antiga constatação que o tempo não é absoluto, que se modifica em consonância com o espaço, resultado do efeito da gravidade que altera fisicamente ambos, o que nos habilita a pensar na existência de outros espaços e tempos, simultâneos aos que habitamos.
Entre as várias gentes que se ocupam desses temas destacam-se os ligados às ciências e as artes (não nos ocupemos dos religiosos porque estes creem em demasia, mas de cientistas e artistas, que também creem, é certo, mas de outro modo, abertos que são a outras possibilidades). Há muita gente que pesquisa o oculto, esteja ele em regiões ínfimas, imensas, ou mesmo em outras dimensões. Manoel Veiga, por exemplo, que nessa nova exposição apresenta-nos suas telas e fotografias mais recentes, pesquisas relacionadas com o ínfimo e o imenso, que demonstram uma sofisticada compreensão de um projeto poético envolvendo pinturas e fotografias sem escorrer em desvios nostálgicos ou exercícios ególatras, tão em voga.
Possivelmente forçando um pouco, pode-se encaixar a produção de Manoel Veiga no âmbito do gênero “paisagens”. Para tanto deve-se, de saída, observar sua dupla proveniência: no caso das fotografias a apropriação de imagens do espaço produzidas por um telescópio de altíssimo alcance, quanto a pintura, no resultado de sua peculiar ação catalisando processos físico-químicos, que faz de cada uma um campo onde os pigmentos, em lugar de serem aplicados, de acordo com o protocolo tradicional da pintura, sofrem alterações calculadas em sua estrutura.
Comecemos pelas fotografias que compõem uma série em pleno curso intitulada Hubble, nome extraído da fonte delas todas, o imenso telescópio orbitando sobre nosso planeta que, livre das impurezas da atmosfera, “enxerga” o espaço sideral com mais nitidez que a quase totalidade dos outros instalados no chão. Mas o que ele “enxerga”? Este é ponto. Os olhos do Hubble não são os nossos olhos, não enxergam do mesmo modo que nós. O propósito desse dispositivo óptico de altíssima tecnologia, lançado ao espaço em 1990, é melhorar a visibilidade de certos processos, no seu caso em particular, a apreensão da luz visível e, sobretudo, da luz infravermelha que estrelas entre outros corpos situados no espaço irradiam no comprimento de ondas entre 3 a 180 micrômetros (1 micrômetro corresponde a 1 milionésimo de metro) e que, ademais de invisível aos nossos olhos, é bloqueada pela atmosfera da Terra. O interesse pela captação da radiação infravermelha deve-se ao fato da heterogeneidade do espaço, cujas nuvens de gás e “poeiras” de natureza diversa eclipsam a luz visível. A luz infravermelha fura esses bloqueios permitindo que se tenha acesso a regiões mais longínquas.
Do mesmo modo que o nosso cérebro “lê” as frequências que atingem nossos olhos, o Hubble, como outros telescópios e radiotelescópios, transpõem em gráficos e cifras o que logra captar da contemplação do espaço. Convém ter em mente que hoje em dia o registro das imagens, tanto no seu Iphone quanto no Hubble, é digital, ou seja, primeiro vem a captação da luz pela tradicional parte ótica (lentes), luz que em seguida é jogada nos sensores digitais, geradores de um arquivo que será tratado automaticamente por um software.
Numa reconfiguração poética usando um computador, Manoel Veiga apropria-se de algumas imagens produzidas pelo Hubble, disponíveis no site da NASA, para gerar outras imagens. Sob esse ponto de vista, ele procede do mesmo modo como o telescópio, sendo que, na prática, suas imagens pertencem a espaços impossíveis, que pouco ou nada tem a ver com o espaço do mundo real de onde partem as que são captadas pelo aparelho, salvo o fato de que tanto um quanto o outro são, no final das contas, representações. No caso do espaço produzido pelo artista, sua paisagem, nasce de relações de causa e efeito deformadas, francamente absurdas segundo os parâmetros da ciência. A tecnologia digital vale-se da estratégia de atribuir cores diferentes a certos elementos químicos para melhor diferenciá-los numa mesma imagem. Agindo homologamente, o artista transforma em preto e branco a imagem apropriada, para posteriormente invertê-la, obtendo uma aparência de negativo fotográfico. Com esses procedimentos sugere um cruzamento da fotografia com desenho e gravura, além de estabelecer uma contraposição de técnicas derivadas da alta tecnologia -Hubble e computador, com uma paciente carpintaria, característica de um trabalho de tradição artesanal.
Se as fotografias referem-se a frações do espaço sideral, paisagens obtidas por torsões em panoramas imensos obtidos por um telescópio, a pintura de Manoel Veiga mergulha cada vez mais profundamente na produção de paisagens que se não são microscópicas, são produzidas pela catalisação de elementos microscópicos.
Como descreve o artista:
As pinturas são realizadas no chão... O processo se inicia com a preparação de uma mistura cuidadosa de várias cores... única e muito fluida e que tem, inicialmente, uma só cor complexa... Ataco a tela, em seguida, com um pincel que mal a toca... passo a acompanhar a secagem da tinta, interferindo em determinados momentos, ... apenas pulverizando água à distância, com o objetivo de criar gradientes de concentração que vão ser responsáveis pelo deslocamento dos pigmentos... os pigmentos mais leves são mais facilmente arrastados pela força de difusão e vão sendo separados dos mais pesados.
A linguagem empregada nesse excerto, o conhecimento seguro de noções extraídas do campo da Mecânica dos fluidos revela o engenheiro informando o artista, habilitando-o a se valer de fenômenos físicos elementares em ferramentas para a construção de paisagens. A ideia de catalisar o processo de separação dos pigmentos por intermédio da pulverização premeditada, sistemática e controlada de água, o solvente por excelência da tinta acrílica, significa o disparo e a aceleração de processos que, de outro modo, seriam mantidos como que adormecidos, latentes. Significa, portanto, a produção de tempos. Assim como em suas fotografias Manoel Veiga ocupa-se do fabrico de espaços, em suas pinturas de agora, resultantes de anos de uma pesquisa profunda e sem paralelo em nosso meio, o artista fabrica tempos e espaços, paisagens construídas pela manipulação de elementos tangíveis, não obstante invisíveis. Sem traços metafóricos, o aspecto recorrente da grande maioria da pintura produzida em nosso meio, as de Manoel Veiga são paisagens nascidas de implosões microscópicas, ínfimas e reais.