Matéria escura
ou a insuspeitável conexão entre Caravaggio e a física.
ou a insuspeitável conexão entre Caravaggio e a física.
por Agnaldo Farias
Publicado no livro "Matéria escura", Barléu Edições, 2019.
“Esta pintura foi minha durante 37 anos, eu a conheço perfeitamente bem, embora não possa dizer que completamente; ela proveu-me de suporte moral nos momentos mais críticos na minha aventura como artista;
dela retirei minha fé e minha perseverança.”
Carta de Henri Matisse ao curador do Museu da Cidade
de Paris, Raymond Escholier, ao doar ao Petit Palais
uma pequena pintura de Cézanne,
da série Banhistas.
Em minha primeira visita ao ateliê de Manoel Veiga, no final do verão de 1997, um pequeno apartamento tórrido em Jaboatão dos Guararapes, grande Recife, montado pouco tempo antes de ele haver se libertado de sua promissora carreira de engenheiro de automação de uma grande indústria química francesa, trocando-a pela química mais tradicional das bisnagas de tinta, caras e importadas, notei, penduradas num canto, apartadas dos vigorosos retratos de extração expressionista, que haviam sido inspirados pelo seu professor e amigo artista mais próximo, Gil Vicente, três, quatro cópias de pinturas clássicas, realizadas anteriormente; obras de Caravaggio, Velázquez, Rembrandt, outros artistas. Estudos minuciosos em honra de três dos maiores mestres do realismo e do claro e escuro, com destaque ao italiano, o revolucionário que ora ele revisita em sua série Matéria escura, aqui publicada. Prova de seu amor e agradecimento pelas lições recebidas.
Na altura desses exercícios, Veiga conhecia pouco os museus parisienses, londrinos, ou os de Veneza, Florença e Roma, e certamente não com o olhar analítico de um artista intrigado com os problemas levantados por esses outros artistas, o modo como os iam resolvendo. Pesando esse fato, admirei-me da boa qualidade dos estudos, os acertos de certas passagens tonais, o uso calculado do verniz, entre outras sutilezas que ele mais adivinhava e imaginava do que via nas reproduções sofríveis que tomava por base. No Brasil, até bem pouco antes da internet e da considerável redução no preço das passagens aéreas, não havia outro recurso senão examinar atentamente as publicações do gênero Gênios da Pintura, coleção antológica de origem italiana – 96 pintores em 96 fascículos, publicados semanalmente –, e que aqui saía pela editora Abril, entre outras publicações que canhestramente compensavam a ausência de obras referenciais da história da arte, artigo raro em nossos museus e seus acervos repletos de lacunas. Reproduzir nas condições de antigamente, quem passou por isso sabe, era próximo de inventar; um problema comum aos que vivem fora dos centros onde os parâmetros são estabelecidos e que é grandemente responsável por caminhos inesperados, produções sofisticadas.
Aos que preferiram não ficar se lamentando, a melhor saída era transformar nossas deficiências em virtude, como Oswald de Andrade expressou em sua frase “a contribuição milionária de todos os erros”, pensamento que se prolongou na máxima de Helio Oiticica, “Da adversidade vivemos”.
Na condição de jovem pintor Manoel Veiga copiava o quê, pensei eu enquanto olhava seu museu particular, senão os objetos do seu fascínio? Na tentativa de compreender a fatura pictórica, o modo particular de apresentar uma cena bíblica, um retrato ou um autorretrato, ele como que se transportava para dentro da cena. Não é assim que acontece quando nos envolvemos com uma obra de arte? Não é na fruição mais absorta que o território da arte se revela um imã poderoso, efetivamente palpável? Lembremo-nos de Julio Cortázar, logo nas primeiras linhas de seu Continuidade dos parques, descrevendo o protagonista ambíguo, um leitor: “Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava.”
Pois bem, no caso de Caravaggio, o artista para o qual Veiga retorna agora mais uma vez, a pintura duplicada era Flagelação de Cristo, tela vertical com o protagonista no centro, amarrado a uma coluna circular, o corpo pendendo para a nossa direita, a cabeça tombada sobre o ombro, ladeado por três homens que o supliciam. A coluna traz consigo, desde o alto, um facho estreito e cônico de luz que desce banhando o corpo de Cristo ressaltando os volumes dos músculos, exaltando-se na brancura do tecido que ele traz enrolado na cintura, o que funciona para interromper a leitura vertical em favor de um vetor horizontal sutilmente truncado. A composição triangular faz contraponto com a luz central: os homens à direita e à esquerda recebem-na rebaixada, uma luminosidade fraca anunciando a escuridão que reina em torno da situação ignominiosa, levando o olhar a examiná-la, buscando revelar o oculto sob ela. O mundo não se dá a ver em sua totalidade, mas sim em frações. A mais importante? Provavelmente a que se refere a realçar a importância da cena; por outro lado, a escuridão assinala a existência de outros e enigmáticos acontecimentos.
Caravaggio levou o claro/escuro ao paroxismo – o modo como ele abordou esse binômio fez com que a luz passasse a ser entendida como produtora do espaço: escureça totalmente um espaço para que ele se converta em algo infinito. Ilumine-o intensamente e acontecerá o mesmo. Prova de que as coisas não coincidem com a porção do espaço que ocupam, mas que se expandem ou se retraem na razão em que são mais ou menos iluminadas. E o trânsito do olhar do claro ao escuro dá-se no ritmo e na direção do fluxo da luz projetada pelo pintor.
Essa introdução à série dedicada à Caravaggio pode induzir à conclusão de que a formação de Manoel Veiga como artista é exclusivamente tributária da história da arte, com destaque ao inventor italiano, seu cânone mais recuado no tempo. Mas os caminhos da criação são imprevistos. O próprio título da série, Matéria escura, trai o conhecimento e a paixão do artista pelo território da física, em particular das novas descobertas no campo da astronomia e da observação do espaço pela via de telescópios, entre outros meios de captação. Veiga, convém esclarecer, foi aluno diferenciado de engenharia eletrônica da Universidade Federal de Pernambuco, além de bolsista do Departamento de Física da mesma faculdade, tendo sido convidado a ingressar na pós-graduação nesta área.
Essa relação com a física estreitou-se mais, desde que, abandonando a representação, a produção dos retratos mencionados no começo deste texto, sua pintura, perto do final dos anos 1990, foi se encaminhando para a construção de “paisagens”, manchas de cor produzidas pela catalisação de elementos microscópicos. Essa construção consiste num processo que implica em precipitar a separação de um amálgama de pigmentos diferentes entre si, diferentes na cor e, portanto, na composição química, por intermédio da pulverização sistemática e controlada de água, o solvente por excelência da tinta acrílica. O borrifamento de água sobre a massa de tinta faz com que ela se vá dissolvendo em velocidades desencontradas, de acordo com as particularidades de cada pigmento, seu peso, sua maior ou menor difusibilidade.
Escutemos o artista:
As pinturas são realizadas no chão... O processo se inicia com a preparação de uma mistura cuidadosa de várias cores... única e muito fluida e que tem, inicialmente, uma só cor complexa... Ataco a tela, em seguida, com um pincel que mal a toca... passo a acompanhar a secagem da tinta, interferindo em determinados momentos, ... apenas pulverizando água à distância, com o objetivo de criar gradientes de concentração que vão ser responsáveis pelo deslocamento dos pigmentos... os pigmentos mais leves são mais facilmente arrastados pela força de difusão e vão sendo separados dos mais pesados.
A linguagem empregada nesse excerto, o conhecimento seguro de noções extraídas do campo da mecânica dos fluidos, explicita o quanto o físico/engenheiro informa o artista, habilitando-o a se valer de fenômenos físicos elementares como ferramentas para a construção de pinturas. Sem traços metafóricos, isto é, sem a produção de imagens de objetos ou paisagens, as pinturas de Manoel Veiga dão a ver implosões microscópicas, ínfimas e reais.
Ultrapassando essa escala para menos, para onde valem as leis da mecânica quântica, os objetos são tão leves que a incidência de um raio de luz, mesmo que débil, pode provocar alterações; movimentos, entrechoques, progressões, que nada têm a ver com os que testemunhamos cotidianamente, entre as coisas que nos rodeiam.
Prosseguindo na descrição da proximidade do artista com a ciência e avançando no âmbito das escalas, a série fotográfica Hubble, anterior a Matéria escura, é um exemplo dos mais interessantes. Hubble, como você deverá ter notado, tem seu nome tomado de empréstimo do telescópio que há décadas vem orbitando sobre nosso planeta, onde, livre das impurezas da atmosfera, “enxerga” o espaço sideral com mais nitidez que a quase totalidade dos outros instalados no chão. Enxergar é modo de dizer, Hubble apreende melhor a luz, sobretudo a luz infravermelha que as estrelas, entre outros corpos situados no espaço, irradiam no comprimento de ondas entre 3 a 180 micrômetros (1 micrômetro corresponde a 1 milionésimo de metro) e que, ademais de invisível aos nossos olhos, é bloqueada pela atmosfera da Terra. O artista, fazendo uso de um computador, apropria-se de algumas imagens produzidas pelo Hubble, disponíveis no site da NASA, e as reconfigura. Pode-se dizer que ele procede de modo semelhante ao do telescópio, embora as imagens produzidas pertençam a espaços impossíveis, criados por ele, que pouco ou nada têm a ver com o espaço do mundo real de onde partem, as que são captadas pelo aparelho. Por outro lado, pode-se dizer que tanto as imagens obtidas pelo telescópico quanto as produzidas por ele são, no final das contas, representações, têm a plasticidade própria às linguagens.
Matéria escura
Mesmo o leitor descuidado e pouco afeito as descobertas da ciência, em suas leituras avulsas deverá ter esbarrado no termo “matéria escura”, aparentado com outro mais famoso conquanto igualmente enigmático: buraco negro. Pois bem, descobertas recentes estimam que a matéria escura, que, por não interagir com a luz, não é diretamente visível, ocupa em torno de 85% da matéria que compõe o nosso universo. Sua presença é indicada indiretamente, pelo efeito gravitacional que ela causa na porção visível, a começar pela deformação nas trajetórias das luzes irradiadas pelas estrelas.
As pesquisas sobre este e fenômenos semelhantes corroboram formulações ocorridas na produção artística do século XX, a partir de autores como Paul Cézanne e Alberto Giacometti sobre as relações que os corpos estabelecem entre si, colocando em discussão os limites problemáticos da noção de vazio, apontando que o espaço entre as coisas não deve ser tomado como inexistente. O tema é vasto e não cabe aqui desenvolvê-lo, mas, na tentativa de precisar as implicações contidas na série Matéria escura vale lembrar a célebre escultura de Giacometti, ponto de inflexão de sua trajetória, sua despedida do surrealismo, Mãos segurando o vazio (Objeto invisível), de 1934. Uma escultura de bronze, uma figura feminina estilizada recostada numa espécie de cadeira de encosto alto, com as panturrilhas apoiadas numa chapa plana, e as mãos posicionadas como numa oferenda, mas que a rigor não estão segurando nada, ou, talvez, segurem o vazio do título. O vazio é o centro da obra, sua presença paradoxal: sua ausência; que imanta o olhar, que não se desgruda da área limitada pelas mãos, uma zona palpitante.
Animado por questões como essa, Manoel Veiga voltou à Caravaggio, uma de suas primeiras obsessões, pensando no papel que o preto – as sombras, a escuridão –, joga em suas pinturas. Para tanto selecionou um grande conjunto de telas, disponíveis em arquivos de alta definição em alguns sites especializados e, à maneira das traduções que os poderosos telescópios eletrônicos fazem das imagens colhidas no espaço sideral, ele passou a trabalhar sobre elas.
Antes de prosseguir, lembremos a poética formulação de Werner Heisenberg, logo na introdução do seu Os princípios físicos da teoria quântica: “Luz e matéria são ambas entidades individuais, e a aparente dualidade emerge das limitações de nossa linguagem”. Isso posto, consideremos as distâncias percorridas por telescópio e pelo artista, ambos a traduzir o que captam. O aparelho avança no espaço infinito para capturar acontecimentos – por exemplo, a luz irradiada por uma estrela determinada, que dela partiu há dezenas, centenas, milhares de anos-luz. O artista debruça-se sobre imagens feitas há mais de trezentos anos. Ambos lidam com o espaço e o tempo, luz e matéria.
O primeiro procedimento de Manoel Veiga consiste em retirar todas as cores das telas deixando-as em preto e branco, dualidade coerente com o sistema de Caravaggio, a exaltação da relação entre luz e sombra. Em seguida, com o pincel eletrônico posto à disposição pelo programa utilizado, cuida de “apagar”, a bem dizer, recobrir de preto profundo, todas as pinturas selecionadas, delas deixando apenas os tecidos que as compõem. De indumentárias completas a roupagens parciais, de trajes a trapos, respeitando de cada um a gama de panejamentos – lisos, estendidos, drapeados, enfeixados, amarrados, retorcidos, tortuosos etc., Veiga deixou todos os tecidos com os quais os personagens das telas foram vestidos ou que atuavam como definidores da cenografia dos ambientes.
O resultado revela o modo peculiar como Caravaggio lograva infundir movimento às suas pinturas, criando volutas, movimentos serpentinados, ondulantes, planos que esvoaçam de um canto a outro da tela, em sentidos variados, do alto para baixo, de um lado a outro, com quebras sincopadas de direção, progressões contínuas semelhantes a glissandos, com variações de luz do branco mais alvo ao cinza perdendo-se na escuridão espessa.
O inchaço das roupagens alude aos corpos invisíveis, como as peles que algumas espécies de animais trocam de tempos em tempos. A familiaridade dos recursos cênicos inventados por Caravaggio e divulgados por uma legião de epígonos mais ou menos bem-sucedidos e que se estende até hoje provoca uma sensação ambígua, uma vez que conhecemos e não conhecemos aquilo que estamos vendo. Ambiguidade potencializada quando sabemos que tudo aquilo nasce do trabalho sobre fotografias extraídas de pinturas, manipuladas para depois serem impressas em jato de tinta, equipamento de última geração, sobre, última surpresa, o mesmo tipo de tecido com o qual Caravaggio empregava para suas pinturas. Enfim, um conjunto de sobreposições que diz muito sobre a complexidade das experiências espaço-temporais vividas nos nossos tempos, e do modo de agir do artista dentro dele.