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O ENIGMA DO INVISÍVEL.


por Bianca Dias


Publicado no livro "Matéria escura", Barléu Edições, 2019.



Tendo as pinturas de Caravaggio como ponto de partida, Manoel Veiga dissolve a imagem ao limite e toca a densidade do invisível. Eliminando cores e dando a ver vestes e dobras, ele ativa o vazio – o espaço cósmico entre uma coisa e outra – entre a presença e o gesto de apagamento, entre o visível e o invisível, entre a superfície e a profundidade. “Matéria escura” que irrompe da curvatura dos tecidos, reinventando corpos e espaços, reorganizando o ato de ver num gesto iconoclasta que provoca borramentos na representação da imagem, da figuração. No intervalo vivo e pulsante das coisas e nos espectros que vibram, há a fina contemplação do tremor do vazio.

Para o psicanalista Jacques Lacan, todos os modos de sublimação – religião, arte e ciência – visam o vazio. Dentre estes, Lacan designa um lugar distinto para a arte. Enquanto a ciência exclui e a religião nos mantém afastados do vazio central, a arte opera seu milagre de modo radicalmente diferente. Por uma estreita afinidade com o real e próxima dos insterstícios de onde se pode contemplar a perda ou a própria dissolução da imagem, a arte faz aparecer, para além da imagem, o vazio da Coisa. No gesto fundamental de Manoel Veiga na série “Matéria escura”, o que é visado não é, portanto, a imagem retratada, mas a obra como significante que delimita o vazio e que o estabelece como linguagem, matéria escura que indica na matéria visível a pulsação do real.

Na suspensão e no campo de gravidade dos corpos que se insinuam em suas pinturas, há um oco recortado no interior da estrutura, ponto que garante a abertura para o claro-escuro, convocando-nos a entrar em suspensão.

Através da imagem, a luz se distribui conforme o impacto do gesto pictórico, esparramando-se pelas dobras – que são também um acontecimento onde há ondulações da luz que emudece e adquire outros percursos – numa maneira singular de reescrever o corpo, a distorção do figurativo que não mais exerce uma função de organização e de contorno do real mas, antes, torna possível precisamente o encontro com o real, faz (o real) emergir, provoca-o, possibilita que uma fresta se abra, algo que indica um limiar – entre a vida e a morte, o homem e a animalidade, a loucura e a sanidade – em que nascer e perecer se repercutem mutuamente. Para Witold Gombrowicz, escritor e dramaturgo polaco, seria algo como um inacabamento próprio à vida, um estado embrionário em que a forma ainda não se revelou inteiramente e, mesmo assim, há uma atração irresistível que preserva, em estado de levitação, a liberdade de algo ainda por nascer.

No apagar ou reduzir a dimensão imaginária de uma imagem, Manoel Veiga recoloca em cena aquilo que está por nascer. E é o símbolo desse gesto de apagamento que divide a imagem, que também a sustenta e atravessa. Se o corpo em Caravaggio ambiguiza a forma, no trabalho de Manoel Veiga a escrita do corpo exibe o real, matéria escura. A luz, em Caravaggio, proporciona-lhe o traço diferencial cuja morfologia marcante é a luz-cor. Manoel Veiga retoma a ocupação espacial da luz de orientação oblíqua e o movimento do claro-escuro, apontando a dissolvência das formas e uma relação com o vazio.

Na perspectiva lacaniana, o vaso é um objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real. A arte, indica Lacan, tal como a experiência da psicanálise, não evita nem obtura o vazio, mas contorna e cinge o vazio central das coisas, para extrair-lhes, precisamente, um sentido inédito, irrepresentável. A criação artística faz surgir o objeto sobre o vazio.

O que irrompe é um novo corpo: um corpo-vislumbre que, mesmo silencioso, se comunica, com muitas referências à luz, sombras, transparências. Corpo onde se faz da ausência uma aguda presença – boca, sangue, pele, rostos, coração, cérebro, sexo, dedos, ossos, carne, olhos, nervos. Maneira radical de escrever um corpo pela extração, como um delírio poético que transgride a ideia do corpo cartesiano e funcional para o corpo cósmico trágico, matéria escura.

Corpo cósmico, intervalar e descontínuo, contradição e tensão reinventada junto à matéria escura. Aqui é o gesto de apagamento que resgata o corpo, que cria um corpo enigmático que só se deixa entrever pela pulsação dos resíduos. O artista torna-se então um poeta e – como revela George Steiner, um dos mais importantes críticos literários do século XX, “o poeta cria à perigosa semelhança dos deuses” – dissipa ou constrói caminhos, reengendra o sentido místico da presença, dissecando a imagem como um exercício de encarnação.

Através da dobra e do insondável, Manoel Veiga opera uma espécie de resgate do invisível. A matéria escura se presentifica como estilo – um estilete a cortar e demarcar um espaço trêmulo, fazendo desaparecer a fronteira nítida entre luz e sombra, propondo uma passagem com ambas operando pela potência do inacabado, própria do barroco, que permite ligar pontos aparentemente distantes a partir da cintilação de uma expressão.

Embora reconheça uma dimensão inclassificável do trabalho de Manoel Veiga, a lembrança do barroco não é aleatória. Severo Sarduy, ensaísta cubano que estuda o tema, assinala a força do gesto que não visa obstruir completamente a luz com a sombra, apesar de colocá-las em contraste ou tornar indiscernível a passagem de uma à outra. Daí resultaria o brilho, o sol visto em eclipse, em zênite, o duplo centro, “sol sobre sol”, a presença que não é um estado, mas um vir a ser da presença num sentido imensurável.

A cosmogonia que Manoel Veiga apresenta é uma trama aberta desarticulando continuidades, permeada pelo insólito e pelo indiscernível do objeto, confundindo interno e externo, dentro e fora, privado e público, uma espécie de Santo Sudário que traz notícias do vestígio e do rastro, brilho intermediário da luz e da sombra, a partir do qual percebemos, como nas estrelas, sua melhor imagem: mesmo que já estejam extintas e não existam mais, continuam a chegar para nós seu brilho oscilante, sua faísca, sua sobrevivência, um texto-pintura que se coloca em dobras infinitas, em virtualidades/leituras infinitas que perpetuamente nos devolvem algumas perguntas essenciais: O que é imagem? O que é visibilidade? O que é a imagem da arte?

O artista opera uma verdadeira arqueologia sobre nossas maneiras de pensar e discorrer sobre o visível, da tradição ao gesto iconoclasta, tensionando olhar e pensamento, perseguindo sempre a imagem de uma alteridade e fornecendo a possibilidade de cada um construir seu próprio acesso à invisibilidade no visível.

É essa heterogeneidade, esse algo estrangeiro e estranho, oculto inclusive nas genealogias, que desloca qualquer fixação identitária, qualquer reflexo de um suposto “si mesmo” e abre a relação com o outro que está em jogo na ideia de uma matéria escura que é, antes de mais nada, exercício poético.

Ir à Caravaggio para dissecar as imagens “indecisas e indecidíveis”, resgatando a invisibilidade de um sentido sempre fugaz: não se partilha o visível sem construir o lugar invisível dessa própria partilha.

Gesto radical de encarnação à maneira que propõe a filósofa Marie-José Mondzain: “Encarnar não é imitar, reproduzir ou simular, mas operar na ausência das coisas”. Na aparição material de uma imaterialidade, de uma invisibilidade no visível, encarnar supõe uma distância libertadora que permite àquele que olha não confundir o que lhe é dado a ver com aquilo que deseja ver.

Se a imagem encarnada se constitui em três instâncias – o visível, o invisível e o olhar que os coloca em relação –, incorporar, por sua vez, é fazer apenas Um. Na disposição à encarnação, Manoel Veiga, quando vai à Caravaggio, recusa toda forma de incorporação, pois já parece saber, pela maneira como constrói seu trabalho, que o dispositivo de incorporação é fusional. Suas pinturas são como encarnações de uma “liberdade incerta e incessante” e, mesmo que não possa apagar completamente os ecos e reflexos do mestre italiano, ele faz um uso da transmissão que o reenvia à algo que lhe é próprio: seus espectros nas nervuras e nas sombras da imagem, a relação com o invisível e a coragem de pensar, no limite do sentido, a indeterminação de seu lugar de artista que coloca incessantemente em questão a potência do olhar e as estratégias do véu (que resguardam a invisibilidade e o aspecto movente dos sentidos).

Eis a máxima ambivalência da matéria escura e do gesto artístico de Manoel Veiga: encarnar uma “liberdade incerta” e, talvez, improvável, como a retratada no êxtase de Santa Teresa de Ávila, eternizado na escultura de Bernini, onde tudo parece flutuar, onde a gravidade cria um novo espaço cósmico: um glorioso desatino, uma celestial loucura.



































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