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Dobras no espaço-tempo


por Camila Bechelany


Publicado no folder digital da exposição individual na Dan Galeria Interior, Votorantim-SP, 2022.



        Dobras no espaço-tempo, título da mostra individual de Manoel Veiga na Dan Galeria Interior, enuncia um conceito que a exposição busca capturar. As obras reunidas aqui manifestam inscrições a respeito da relação entre imagem, universo e representação. Estamos diante de imagens que se aproximam da abstração, não como seu assunto ou conteúdo, mas, sobretudo, como elemento incorporado ao seu processo de criação.
        Com seu conjunto de novas pinturas e a série de fotografias Hubble, Manoel Veiga cria obras de interesse filosófico que refletem um pensamento sobre a origem e expansão do universo e portanto sobre as condições da vida neste nosso espaço-tempo. Seu interesse pela física quântica e todo o conhecimento que vem adquirindo sobre a astronomia contemporânea não é somente uma curiosidade provisória. Tendo tido formação e atuação em engenharia no início da sua vida profissional, a perspectiva da pesquisa científica se configura, para ele, desde sempre, como método de trabalho.
        Nos postulados da Geometria do Acaso, Blaise Pascal (1623-1662) afirmava, no século XVII, que podemos raciocinar, especular e fazer cálculos com o acaso. O desdobramento necessário de tal projeto é que o conhecimento parece nunca ser destituído de seu componente prático pois ele nunca é dado a priori, é preciso construí-lo. A geometria aqui entendida em sentido amplo, como método de racionalização da natureza e o acaso como uma forma de resistência da natureza a ser racionalizada são ideias centrais também neste raciocínio.
        Cientistas, artistas e filósofos são pessoas que lidam com esse componente prático do processo de construção do conhecimento, pela experimentação revelam a cosmologia científica e expressam o seu sentido humano. Tomemos como exemplo, a luz. Numa percepção visual, não podemos entender como é seu comportamento. A luz é uma coisa que temos diante de nós, que está aí. Vê-la não é conhecê-la. Em contraposição, conhecer a luz é saber da sua essência e esta essência não está aí, ela não se mostra. (Ortega y Gasset). Nesta perspectiva, para conhecer a luz é preciso um esforço mental que extrai do caos um esquema de ordem, uma linguagem, um cosmos, uma informação.
        Os métodos de construção das imagens de Manoel Veiga revelam também métodos experimentais de construção de um saber. Vejamos seu depoimento:

“As pinturas são realizadas no chão… O processo se inicia com a preparação de uma mistura cuidadosa de várias cores…única e muito fluida e que tem, inicialmente, uma só cor complexa… Ataco a tela, em seguida, com um pincel que mal a toca… passo a acompanhar a secagem da tinta, interferindo em determinados momentos,… apenas pulverizando água à distância, com o objetivo de criar gradientes de concentração que vão ser responsáveis pelo deslocamento dos pigmentos… os pigmentos mais leves são mais facilmente arrastados pela força de difusão e vão sendo separados dos mais pesados.”

        O trabalho segue portanto, procedimentos bem definidos e que foram desenvolvidos ao longo de alguns anos de experimentações. Nesse sentido, sua prática se aproxima a de um cientista em laboratório. No entanto, Manoel Veiga não anseia ter controle total sobre os resultados, como seria o objetivo de um técnico. Ele conta com o princípio de difusão da matéria como coadjuvante e seus resultados podem ser surpreendentes. A pintura se constrói a partir do movimento da matéria líquida sobre a superfície sólida e seus contornos são definidos pelo controle que ele faz dessa matéria. Resultam daí, imagens que revelam um espaço luminoso, etéreo mas profundo. Podemos reconhecer formas e eventos da natureza como formações rochosas, animais aquáticos, movimento dos rios ou fluidos corporais. Oque parece lógico já que o artista trabalha a partir dos princípios de comportamento da matéria.
        Formulada por Albert Einstein (1879-1955), a Teoria da Relatividade Geral, de 1915, descreve como a matéria e a energia distorcem o "tecido" do espaço-tempo, o que resulta na força da gravidade. Segundo estudos mais recentes, objetos astronômicos densos, podem curvar o espaço-tempo consideravelmente, o que podemos chamar de dobras. O brilhante Einstein transformou o entendimento que tínhamos até então sobre o espaço, o tempo e a gravidade. Ainda segundo a Teoria da Relatividade, o tempo pode ser acelerado, passando mais rápido para uns, ou freado, passando mais devagar para o outros. Para um corpo parado, em relação a um referencial, o tempo corre com velocidade máxima. Quanto mais rápido o corpo se move, mais devagar o tempo passa. Portanto o tempo não é absoluto, ele se modifica de acordo com o espaço, resultado do efeito da gravidade que altera fisicamente ambos.   
        Na série de trabalhos Matéria escura, Manoel Veiga mergulha na linguagem de Caravaggio (1571-1610) para produzir uma série de impressões em preto e branco sobre tela. Caravaggio é um artista com o qual, Manoel Veiga tem grande intimidade porque o estudou bastante, tendo inclusive reproduzido algumas de suas obras em ateliê. Oque sobressaiu nessa análise fina da produção de Caravaggio, foi o tratamento do espaço que ele dava à cena representada. A partir da manipulação digital de fotografias das pinturas, Veiga apaga tudo que não é panejamento, oque dá destaque aos espaços vazios e à dramaticidade causada pelos movimentos e dobras dos tecidos. No entanto, é pelo título que o artista deu à série Matéria escura, que percebemos como ela articula seu pensamento na arte. Na astronomia contemporânea, chama-se matéria escura um novo tipo de matéria que não interage com a luz e que ainda não conseguimos descrever totalmente porque não conseguimos vê-la.
        A matéria escura reage à gravidade e “sua presença é inferida pelo efeito gravitacional causado por ela sobre a matéria visível.” Na Via-Láctea ela corresponde a dez vezes a massa visível sob forma de estrelas ou gás mas não se sabe a forma e nem a composição que ela tem. A curvatura dos tecidos pintados por Caravaggio funcionam como índices da matéria escura para Manoel Veiga. Ele destaca esse elemento da imagem, trazendo para sua superfície todo o movimento e produzindo um espaço profundo no entorno das formas. Há uma semelhança dessas imagens com as imagens produzidas a partir das fotografias do Hubble. Ambas destacam espaços profundos e formas fluidas sobrepostas e em diálogo. Estamos a representar o comportamento do universo em tudo o que produzimos?
        Como apenas conhecemos a matéria comum, desconhecemos totalmente a natureza de 96% do universo. Em outras palavras, o que conhecemos corresponde à ponta do iceberg. Que as obra de Manoel Veiga nos façam despertar cada vez mais para o fato de que somos uma mínima parte de uma imensidão da qual não sabemos mensurar e que nos faça portanto mais conscientes de nossa dependência de forças maiores e de todos os outros seres que nos acompanham, e portanto menos individualistas e mais coletivistas.




























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São Paulo, Brasil