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Estética dos fluidos


por Christine Frérot
(traduzido do francês por Tina Montenegro)



Publicado no catálogo da exposição individual na Galeria D'Est et D'Ouest, Paris, França, 2011.



“A pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade” (1)

M. Merleau-Ponty, «O olho e o espírito», 1964.




O trabalho sobre o informe (2) pictórico empreendido por Manoel Veiga desde os anos 90 está estreitamente ligado a noções de espaço e de tempo que, acrescidas da pesquisa sobre a transparência, constituem sua matriz experimental. Seja nas fotografias em preto em branco (série « Hubble »), que ele mostra pela primeira vez, seja em suas últimas pinturas acrílicas (numeradas e sem título), seu processo responde a diversas exigências racionais de ordem técnica – talvez suscitadas por sua primeira formação de engenheiro – que se combinam ao seu desejo de exploração da matéria, à parte deixada ao acaso, à liberdade vagabunda dos líquidos, à busca da beleza. Em suas telas, o artista utiliza principalmente o vaporizador, em detrimento do pincel, emprega seu sólido conhecimento da química, privilegia um sábio domínio dos fluxos. Quanto às fotografias, elas são retrabalhadas no computador com base em clichês de galáxias que ele recolhe na Internet. Ao observar as aventuras da matéria que são suas obras, é difícil não ligar seu universo plástico à herança deixada pelos pintores do informal (3) que pregavam, meio século antes, a ruptura com o desenho preliminar, a soberania do gesto e da matéria, e rejeitavam a obra como representação.

Não é portanto no campo da metáfora que se deve procurar compreender o pensamento estético de Veiga, mas sim no da experiência visual. Ao privilegiar o ver e o sentir, percebem-se as dimensões fenomenológica e poética que nele operam. A exploração permanente do movimento suscita uma interrogação sobre a ligação entre o espírito e a natureza, entre escondido e desvelado, entre espaço pensado e espaço vivido. É assim que o imaginário pictórico estético do artista, misturando interior e exterior, associando e entrelaçando massas frágeis e diluições aracnianas, opondo sombras e luzes, implosões e explosões, situa-se no cerne da « dialética do dentro e do fora » evocada pelo filósofo Gaston Bachelard. O gestual controlado de Veiga quer resolver as contradições da matéria e, para colocar uma certa ordem no caos, ele faz-se demiurgo de uma criação para além da natureza. Sua pintura evolui em uma dinâmica do íntimo, irriga entremeios (4) virgens de qualquer intervenção, ligados à preparação da tela. Entre razão e paixão, entre aventura e experimentação, entre especulação e manipulação, ele procura criar um outro tipo de « natureza », inventa uma paisagem orgânica entre fogo, carne, água e ar, em permanente restruturação, tal qual um alquimista para quem a conquista do espaço pictórico é o primeiro desafio.

A maestria (5) gestual do pintor suscita diversas questões e observações. A ideia das relações entre ciência e natureza, ou entre ciência e poesia, impõe-se como o núcleo da obra em que estão indissociavelmente fundidos forma e saber. O jorro, o escoamento, os turbilhões, as diluições, a efusão, a dispersão e os arranhões... criam um ritmo quase sonoro, trazem uma certa musicalidade à obra. Dois elementos naturais, « o fogo » e « a água », na origem da dissolução e do apagamento, introduzem um outro lugar mais arcaico, o da transparência quase visível onde se estruturam as zonas objetivas e subjetivas puras de sua criação. A cosmogonia aquática dos Astecas que associa a água e o fogo possui um hieróglifo que designa a guerra em que os dois elementos se afrontam. Na obra de Manoel Veiga, não há luta, mas uma fricção sutil e delicada, por vezes interrompida, frequentemente dilacerada. É um mundo onde « o acidente », da forma à cor, tem um papel essencial e faz o pintor descobrir um universo mais vasto, abre para ele um horizonte mais amplo e o desafia permanentemente a afrontar os limites, sem esquecer os da tela.

Se falamos de hierogamia (6) cósmica (casamento entre a terra e o céu), é para abordar a ideia do « vazio-mediano » desenvolvida pelo escritor de origem chinesa François Cheng, (7) a do sopro, a do lugar de circulação vital onde se desenvolvem os processos de interação e de transformação mútua. A estética muito pessoal de Manoel Veiga poderia ligar-se a essa filosofia da paisagem em que o yubai (8) é o « branco » deixado voluntariamente na imagem [da paisagem] para instigar a imaginação do espectador. (9) Conjugando natureza e água, o artista aproxima-se da filosofia budista e da paisagem chinesa, mas ele também produz uma geomorfologia visceral, em que o orgânico faz-se carne. O « movimento real onde a natureza está se construindo », (10) entre pensamento e matéria, talvez também seja para ele beleza solitária.






(1) Merleau-Ponty, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. Tradução Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 20.
(2) Referência à exposição L'informe: mode d'emploi, ocorrida em 1996, no Centre Georges Pompidou, em Paris, com curadoria de Rosalind Krauss e Yves Alain-Bois. O conceito de informe é tirado dos escritos de Georges Bataille.

(3) Ver definição de Arte informal na Enciclopédia de Artes Visuais do Itaú Cultural: https://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3797

(4) N.T.: Em francês, entre-deux (entre dois).

(5) N.T.: Em italiano no original.

(6) N.T.: Hiérogamie no original.

(7) Le dialogue, François Cheng, Desclée de Brouwer, Paris 2002, p. 15

(8) N. T.: No original.

(9) Les raisons du paysage, Augustin Berque, Hazan Paris 1995, p. 76.

(10) Manoel Veiga, Recife (Brasil), janeiro 2011.




















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São Paulo, Brasil