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Manoel Veiga


por Clarissa Diniz


Publicado no folder da exposição individual na Galeria Dumaresq, Recife PE, 2009.



Como tradicionalmente a pintura é criada através da manipulação mecânica de suas ferramentas ou suportes (pincéis, espátulas, telas), esta costuma ser associada ao gesto impetuoso e corporal que a produz; ao seu autor. Esta concepção de pintura – pautada num artista-demiurgo que dominaria integralmente o material com o qual lida – explora a subjetividade como caráter identitário, constituindo, para a arte, um território que historicamente é entendido como antagônico ao da ciência, suposto palco da objetividade. Manoel Veiga, por sua vez, tem provocado tal duopólio arte x ciência ao trazer, para seu método produtivo em arte, procedimento de roupagem similar àquele que fundou a ciência moderna: “afastar” o observador do sistema observado. Nessa intenção, o artista tem instaurado um processo de criação no qual sua soberania autoral é restringida mediante a incorporação da vontade da matéria e da natureza com as quais lida – ‘entes’ que nos dominam sem que percebamos sua fálica presença. Implicitamente enuncia, por meio de sua pintura, que é necessário reconhecer tais ‘entes’ como forças objetivas que, vivendo conosco relações de simbiose, parasitismo e mútua exploração, são dotados de um poder de auto-organização e reprodução que obedece a princípios que desconhecemos. O reconhecimento de seu poder e a consequente exploração deste, base da pintura de Veiga, resulta numa obra de autoria múltipla e abstrata. Sem pinceladas, e a partir da atuação de forças e princípios que, sabendo indomáveis, o artista não anseia comandar em totalidade, senão parcialmente explorar (como nos desvios e freios geometrizantes que recentemente têm habitado sua obra), a pintura se constrói como o movimento que se percebe num rio ou numa xícara de leite no momento em que se coloca um pouco de café. Assim o é: ainda que, a partir da ação do artista em seu embate com a matéria, ocorra a criação de “atmosferas” e uma consequente sugestão de estados de percepção, não há, contudo, elaboração de metáfora ou significação. Fugindo dos conteúdos e expressões baseados no modelo lingüístico do significante-significado, a obra alude à idéia de diagrama, que ignora os sentidos e a distinção entre o artificial e o natural, pautando-se unicamente por funções e matérias. Não importando os sentidos adjuntos ao movimento (conteúdo, por exemplo) ou o status de sua pulsão de origem (se mecânica, artificial etc), é em si o espaço-fluxo da existência que, com sua contundência e sedução, protagoniza a pintura e o olhar daqueles que a observam. Numa outra perspectiva pode-se afirmar ainda que a pintura de Manoel Veiga – em pretensão, nem toda sujeito, nem toda objeto – alude também à indefinição, probabilidade e subjetividade contidas na ciência e seus modelos de controle, problematizando a utopia moderna de uma ciência impassível, isenta de vulnerabilidades. Qual seja o ponto-de-vista, é tecido um elogio à porosidade existencial, desejo de fusão que, libidinoso, perpassa seres, coisas, pensamentos e disciplinas. Ao gozar da conjunção ao invés de insistir num modelo disjuntivo de mundo (sujeito x objeto), a pintura de Manoel faz de si seu assunto, num procedimento metalingüístico em que, já há alguns anos, sua obra (um sistema) é seu tema e procedimento. É que, como cientista, visto que engenheiro, tomou para si a responsabilidade de, inclusive na arte, pensar não só numa epistemologia dos sistemas observados, como também numa dos observadores. Daí não representar a guerra, mas guerrear contra, a favor e em si mesmo.


Diniz, Veiga, Monod, Deleuze, Basbaum, Morin, von Foerster, a matéria, as idéias, o som e o cheiro da chuva que cai.




















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São Paulo, Brasil