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Manoel Veiga. Pintura em trânsito.


por David Barro


Publicado no livro "Manoel Veiga", Dardo Editora, 2017; e no livro “Matéria escura”, Barléu Edições, 2019.


“Nossos pais restauravam as estátuas; nós retiramos deles o nariz e as próteses; nossos descendentes, por sua vez, provavelmente farão outra coisa.”

Marguerite Yourcenar, O tempo, esse grande escultor.



Marguerite Yourcenar escreve que no momento em que uma obra está terminada, sua vida, em certo sentido, começa. Depois do primeiro passo do bloco para a forma humana, a vida da escultura adquire outra pulsação; a da admiração ou a do desprezo; a da conservação ou a do desgaste. Essa vida é um caminho na direção da morte, na direção desse estado mineral informe que foi operado e desconstruído pelo escultor. Porque toda obra de arte existe no tempo, embora certamente não de maneira firme, estável. Basta pensar na cor das muitas estátuas policromadas que chegaram até nós de outra forma. Uma vida se apaga e outra nasce, produto de uma beleza involuntária associada aos avatares da história, mas também a partir de determinados tributos, como esse que Manoel Veiga projeta na série Matéria escura a partir de sua admiração confessa pelas pinturas de Caravaggio. O resultado visual não está longe desse corpo das esculturas consumido pelo tempo, dessa beleza do fragmento daquelas estátuas derrubadas dos seus pedestais em golpes iconoclastas. Essa beleza decapitada é ensaiada hoje numa vontade de abstração que caracteriza a sociedade contemporânea.

Nessas obras a natureza mergulha, se precipita no abismo, mesmo quando parece permanecer. Como espectadores, deixamo-nos levar pela imagem como quem se perde nas profundezas do haiku. São obras que evocam o futuro e o passado. Manoel Veiga, em sua devoção, abraça o sentimento de perda da mesma maneira como esse sentimento nos é narrado por Georges Didi-Huberman quando observa que ver é sentir que algo nos escapa inelutavelmente; em outras palavras, quando ver é perder. Tudo se figura e se desfigura. A paisagem limpa a paisagem, mas paradoxalmente suas cenas ficam saturadas, nos arrebatam em sua vertigem. São pinturas que reforçam o enigma, que se projetam como um espaço intersticial.

Matéria escura nos anuncia um vazio ativo, como os buracos volumétricos de uma escultura de Henry Moore. As figuras, sumidas, parecem ter sido solapadas pelo tremor, que afina a imagem, que a tempera como se ela fosse um piano. O vazio é aqui uma membrana sutil, uma presença invisível, como a luz ou a gravidade. Em outras palavras, o apagado é aqui um fundo ativo, dialético, uma ausência pura que evoca e permite todas as presenças dos quadros tomados como ponto de partida. Pessoalmente, parece-me que não está muito distante a sensação de angústia gravitacional que as figuras consumidas de Giacometti despertam em mim. Maurice Blanchot disse uma vez que Giacometti esculpia a distância, entregando-a a nós e entregando-nos a ela, uma distância movediça e rígida, capaz de desmoronar num instante. Penso ainda em Gerhard Richter ou em Luc Tuymans, que também avançam para a dissolução da imagem. O que neles é obtido por meio da borradura, aqui é criado a partir da omissão. Todas essas imagens, assim como as de Manoel Veiga, geram um conflito. Trata-se de uma cisão entre o que é, o que o artista deixa ver, e o que vemos. Como num poema, abrem-se novas possibilidades de sentido com obras que flutuam em nossa mente, que são parte indissociável de nossa história visual. Poesia. Porque no poema a proposta do enigma sempre se mantém, como nessas imagens, onde o possível treme, como se um acontecimento estivesse prestes a se desencadear. O pictórico é levado a uma situação limite.

Em Matéria escura, o artista elimina a cor com Photoshop. Gosto da palavra usada em português, “apagar”, porque aqui, mais do que nunca, ela assume um duplo valor semântico. Sobrevivem apenas os tecidos, todo esse universo de dobras, tão presentes na história da pintura. É uma obra neobarroca, fiel a uma pintura que tende cada vez mais à hibridação, à combinação do digital com o analógico. Se algo caracteriza o barroco é a tendência ao extremo. Esse dobrar, desdobrar e voltar a dobrar nos lembra Deleuze falando de Leibniz. Em Matéria escura o motivo transborda, o corpo é insinuado.

Estas novas obras da série Matéria escura não estão distantes das últimas pinturas de Manoel Veiga, que parecem gravitar num espaço indeterminado, deixando o trabalho a cargo da própria pintura, numa ação que teve início com as primeiras realizações de um artista como Morris Louis e que, neste caso, revela-se com um uso tímido, quase imperceptível do pincel, uma vez que o fluxo de tinta é dirigido de forma indireta. Veiga introduz um novo espaço, construindo uma paisagem semelhante à de suas fotografias da série Hubble. Em todos esses trabalhos a densidade se estratifica, como na formação de dois eixos numa tempestade. Muitos conhecimentos matemáticos foram desenvolvidos a partir de estudos que procuravam entender o caos. No Hubble nosso ponto de partida é a apropriação de imagens do cosmos em alta resolução, editadas para transformarem-se em imagens abstratas, em preto e branco. A inversão da cor torna essa imagem ainda mais estranha aos nossos olhos: ela se torna mais poética, mais indizível. O espaço, fictício, revela um mundo para além do nosso mundo, mesmo sendo consequência dele. Não seria o mesmo efeito produzido por esse original maneirismo pós-caravaggio de Matéria escura?

Todo o trabalho de Manoel Veiga aparece como uma espécie de jogo sobre o não solucionado. A trama é sutil, mas determinante. Tudo emerge lentamente. Como espectadores, estamos diante de uma serenidade que seria algo como estar entregues ou confinados no aberto. Porque o processo de observação é o que se revela como verdadeiramente importante, e para além do objeto do olhar está a opção inarredável por explorar. Os modos de percepção são, nesse sentido, vistos como um desafio, trabalhando opções que não expressam abertamente nem ocultam completamente, mas que apontam e insinuam, deixando tudo em suspenso. Enquanto isso, um olhar atento para as obras logo revela que o trabalho de Veiga obedece a dois impulsos bem diferentes: de um lado, uma primeira etapa de restrição, de síntese, de austeridade intencional na hora de remover o que é acessório; de outro, uma curiosidade densa por histórias que só podem ser auscultadas a partir do olhar tenso, a partir da experiência de quem deixa espaço e tempo a cargo da observação e de quem conhece a história. Tudo é destilado a partir de um frágil equilíbrio entre a realidade e sua ocultação, deixando espaços em branco, lugares para os parênteses que surgem das fissuras perceptivas criadas por um processo de borradura muito pictórico. O dispositivo do olhar se revela e tudo é projetado no escuro. O especulativo, então, ganha protagonismo, e a observação se conscientiza de seus limites. Assim, o equívoco funciona como desencadeador, como desafio, como singularidade.

Penso nas muitas ocasiões em que Antonioni afirmou que não é o caso de utilizar instrumentos cada vez melhores para obter imagens cada vez mais belas, mas de aprofundar os conteúdos para melhor captar as contradições, as mudanças, as atmosferas. Efetivamente, Veiga trabalha seu próprio protocolo experimental: as cores, as texturas, os efeitos. Por isso sempre joga com distúrbios e perversões visuais. É o que Maurice Blanchot define como experiência de conformação de formas voltadas para o desconhecido. Porque aqui há uma experiência de tempo: o tempo da pintura, o da história. Em Blanchot é o tempo do inaudito e do impensável, do obscuro ou, mais concretamente, da ausência de tempo, ou de presente sem presença. Como nas formas de aparência fractal de Manoel Veiga, tudo transborda. Em Matéria escura é a história em si mesma, numa espécie de reencarnação da pintura e de suas próprias realizações. Porque os anos passaram e, contudo, continua em vigor nossa tendência de ver o mundo em termos pictóricos. Perante cada imagem projetamos uma expectativa inconsciente derivada de uma contaminação irreversível de referentes visuais adquiridos previamente.

De novo, estas reflexões me remetem ao texto citado de Marguerite Yourcenar, que diz que os grandes aficionados por antiguidades restauravam por piedade e que por piedade desfazemos o que eles fizeram. Também é possível que tenhamos nos acostumado melhor às ruínas e às feridas. Mas não é só isso. Esse costume, e a inclinação de nossa época pelo abstrato, levam-nos a amar essa ruína e a passagem do tempo. A forma e o gesto que o artista impõe a suas obras para elas não passa de um breve episódio, como acontece com essas obras de Caravaggio. Já afirmava Medardo Rosso no primeiro de seus textos: o importante na arte é fazer esquecer a matéria. Rosso diluía a forma e suas figuras passavam por um processo de desmaterialização, como se fossem rodeadas por grumos de cera que deveriam deixá-las cegas. Sim, falo de forma muito consciente sobre escultores – mas escultores muito pictóricos –, porque essas obras de Manoel Veiga têm uma contenção característica de parte de nossa melhor escultura. O belo é o não objetivo, o que nos faz pensar. Veiga constrói seu imaginário nessa área de indeterminação e opera uma mudança de ordem. Francis Bacon usava a expressão “sequências movediças” ou “ordens de sensações”. Em Bacon, a figura se divorcia do figurativo. Aqui, como nas obras de Bacon, existe uma zona de indiscernibilidade para onde tudo tende a escoar. Por isso Deleuze mostra como a boca, em Francis Bacon, é um buraco por onde o corpo escapa. Assim, escorrem a carne, a cor... Em Bacon o corpo está em trânsito tal como as pinturas de Caravaggio nas mãos de Manoel Veiga. Não se trata de olhar para a imagem, mas de olhar através dela, deixando que a imagem estenda sua riqueza. Gadamer usa o termo verweilen, uma espera sem pressa. O que vemos é uma interrupção da realidade propriamente dita, de seu tempo, de seu espaço. É a imagem como fricção, como curva escura, como dobra ou fissura perceptiva, uma negra sombra da qual é impossível escapar.
































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São Paulo, Brasil