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Matéria escura


por Galciani Neves


Publicado em versão reduzida no folder da exposição individual no Museu Oscar Niemeyer, Curitiba PR, 2017. Publicado na íntegra no livro “Matéria escura”, Barléu Edições, 2019.



Há quem possa supor que o espaço (e, contiguamente, sua constituição) seja apenas um apego cientificista para demonstração de uma espécie de ordenamento proveniente de um ponto de vista, que se elege, para, por exemplo, conferir limite geométrico entre seus elementos, para explicar seu uso e função sob alguma razão mundana ou para esquematizar qualquer discurso estetizante originário no ceio de disciplinas, supostamente apartadas, a saber: a arquitetura, a geografia, a história, a física, a antropologia, o urbanismo... Por isso, não é absolutamente um gesto insano, apesar de gasto e dogmático, que uma dessas autorias, ao longo da nossa epopeia em busca de conhecimento, determine regras que transformam o espaço em um problema específico de acordo com alguns ditames. Dito de outro modo, há mesmo uma insuficiência cômoda em nossas especulações para experienciar o espaço. Poderíamos mesmo pensar que a arte lançou alguns olhares, sugeriu outras regras de construção que acrescentaram episódios em uma compreensão do espaço como imagem, como circulação, como acontecimento artístico, assim mesmo, em uma declaração redundante.

Suponhamos, então, uma pretensa liberdade para lidar com o visível, com o palpável, com aquilo em que pisamos, com o que nos permite ser, o nosso “onde”. E que tudo que possamos atribuir a isto que determinamos como espaço seja provisório e à medida que nos apressamos em fórmulas que pareçam convincentes, uma outra condição nos surja. Ou seja, a atitude é o comentário, o devaneio, tal como um texto escrito à beira-mar, sempre com uma onda à sua espreita e um insistente escritor a refazê-lo com outros sentidos, a cada vez que lhe sobra uma faixa de areia. Mas não julguemos errado, não é falta de nexo ou um desejo supérfluo. Mas talvez um convite a visualizar uma condição de espaço que lida com um desafio que, ao mesmo tempo, apaga e reescreve a história, lança outras narrativas e admite um perscrutar exploratório, falível.

Postas algumas dessas questões, chegamos ao exercício de Manoel Veiga ao adentrar as narrativas visuais de Caravaggio. Reparem na escolha pelo verbo “adentrar” e na atribuição às criações do mestre como narrativas. Veiga foge do hábito categórico das possíveis lógicas de (re)construção da história da arte como mecanismo de apropriação, o que a tantos artistas é estratégia habitual. Os procedimentos são internalizar, adentrar, deixar-se perder num labirinto de anatomias humanas e de espaços e seus comportamentos. Frear a cada parte de corpo encontrada, tatear às cegas o ar que preenche o espaço. Não é a consonância com um caráter progressista ou conservador, revolucionário ou nostálgico em relação ao passado – no seu caso, personificado em Caravaggio. É que na série “Matéria Escura”, o artista dribla a demonstração arqueológica que se estabelece como estudo de processos, de métodos e que se demonstra nas leituras sobre o pintor na história da arte. O interesse de Veiga recai na premissa de que nas dimensões espaciais de Caravaggio que relatam cenas e parecem registrar instantes há um “onde” a ser reevidenciado como vazio. É com esse sentido de ausência que Veiga traduz Caravaggio. O artista simula outra profundidade na perspectiva arquitetada pelo pintor e lhe acrescenta intervalos vazios. São interstícios constituídos de negros.

Assim, o gesto de adentrar lhe cai como prática. O artista extrai a composição cromática das pinturas, reorganiza o espaço a partir de um desenho de escuro e o que sobra são os intervalos entre as coisas: vestimentas e suas pregas e dobras, reentrâncias, ilusórias perspectivas de baixos-relevos, além dos caimentos de tecidos que formulavam uma espécie de moldura teatral dos espaços caravaggescos. Nestes novos cenários, formulados por uma presença de um negro profundo, Veiga também executa uma reconstrução da imagem do corpo que, nas narrativas de Caravaggio, lhe conferiam tanto um sentido de ação como de escala, mas não com a intenção de aniquilar os personagens e seus gestos. O intuito do artista é dissolver tais performatividades e transpô-las como índices nas vestes dos personagens e nas relações destas com o novo espaço que formula.

Estas arquiteturas traduzidas desde Caravaggio por Manoel Veiga verbalizam uma imagem/espaço que abre como possibilidade de percepção uma análise do ambiente caravaggesco. E neste rasante, o artista torna visível os limites destes objetos, ou seja, a fronteira descritível entre corpo e espaço. Vale também pontuar que com estas extrações de corpos, Veiga fabula uma outra topografia de Caravaggio, ou melhor, a sua versão de relevos para as narrativas do mestre: sugestões de braços, pernas, dorsos, troncos que se misturam esquartejados; modulações de altos e baixos entre um corpo e outro; fronteiras entre primeiro e segundo plano e ponto de fuga; borramentos entre corpos, objetos e espaço e também entre o visível e a sua sombra. Há nesse jogo de inventividade geográfica a evocação de partes do corpo em plena atuação e seus espectros que vibram no escuro da matéria negra que é espaço. Daí que nos parece oportuno relembrar o célebre trecho de um diálogo de Hamlet, quando este indaga a rainha: “Não estás vendo nada ali?”. E ela o responde: “Absolutamente nada, mas tudo o que há eu vejo”.






















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São Paulo, Brasil