Evanescências
por Guy Amado
Publicado no folder da exposição individual no Paço das Artes, São Paulo SP, 2003; e no catálogo da exposição individual na Galeria Dumaresq, Recife PE, 2003.
O gênero da pintura abstrata desde há muito não se encerra nos limites de uma noção esquemática e estanque, comportando abordagens e procedimentos os mais diversos; e há pelo menos 50 anos um extenso rol de artistas vêm repensando e ampliando as possibilidades de expressão nessa linguagem. E é nesse campo - com certo descompromisso por quaisquer categorizações - que transcorre a fatura pictórica de Manoel Veiga. No decorrer dos últimos anos, o artista vem desenvolvendo uma pesquisa artística pessoal nos domínios da abstração que parece ter alcançado, na presente produção, uma qualidade de originalidade que reafirma o grau de experimentação em sua prática.
A noção de fluidez, que já se apresentava como recorrente na poética de Veiga, é agora investida de uma interpretação quase literal. O artista chega a uma solução pictórica em que se vale de um processual prosaico e peculiar, elaborando suas composições atacando o suporte diretamente sobre o plano do chão. Tal decisão constitui-se em artifício para anular a ação da gravidade, permitindo assim que a refinada solução de pigmentos de acrílica – previamente preparada e que o artista 'conduz' aplicando borrifos d'água - se disperse sobre a tela por difusão, avançando de maneira incerta sobre a mesma, o que confere certa aleatoriedade à empreitada. Veiga passa, portanto, a operar com pouco controle sobre o resultado final, numa situação de 'acaso controlado'. O que, se por um lado incorre em um fator de risco, reserva, por outro, a possibilidade de se obter composições de imprevisível beleza: a emulsão evanesce e sedimenta-se contra o campo branco da tela, só então revelando o que se configura como a obra acabada.
O conjunto de obras ora exposto evidencia elementos inovadores na fatura do artista: nessas delicadas composições, a expressividade do gesto - enfatizada em sua pintura anterior - limita-se agora às pinceladas com que o artista inaugura a obra. Um índice de presença discreta, que a estrutura rarefeita dessa nova produção deixa aqui e ali entrever. Essas mesmas pinceladas acabam por se constituir na única concessão do artista a uma idéia de procedimento pictórico mais 'tradicional', por assim dizer: dali em diante, o processo segue seu curso por vias ditadas pelo comportamento instável dos líquidos sobre a superfície, mediado pela intuição do artista.
Talvez por serem concebidas por meio de método não muito ortodoxo, ou quem sabe pelo fato de sermos mais e mais assaltados por uma compulsiva visualidade eletrônica no dia-a-dia da metrópole, essas peças parecem investidas de uma qualidade estranha à noção convencional de pintura: assemelham-se a ' fake-monotipias' de etérea presença, por vezes aludindo à sofisticação artificial de imagens digitais. A delicadeza dos padrões que afloram, espontâneos, nos contornos das 'formas-manchas' que tomam a tela – ou são por ela contidos, não se sabe - evocam ora uma cartografia onírica, de gradientes imprecisos, ora graciosas formações microscópicas semelhantes a fractais, estruturas associadas à teoria do caos.
Manoel Veiga desde sempre se interessou por investigar aspectos da física – especialmente a mecânica quântica, reminiscências de uma carreira pregressa em engenharia –, e este dado adquire relevância em sua produção quando pensado como elemento potencializador de leituras acerca de sua produção. Suas telas passam a ser compreendidas como estruturas dinâmicas, sistemas instáveis e de incerta harmonia, onde a ação semi-aleatória dos elementos desencadeia uma quieta reflexão sobre a temporalidade e o registro da própria fatura.