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Inventário de Espaços e Tempos


por Moacir dos Anjos


Publicado no catálogo da exposição individual na Fundação Joaquim Nabuco, Recife PE, 2000.




Afastadas da ambição de figurar o mundo que lhes é externo, as pinturas de Manoel Veiga se voltam, introspectivas, para a investigação e o registro de sua própria feitura. Vindos de todos os lados do suporte, enérgicos traços e manchas de carvão e tinta correm, em aparente confusão, rumo ao interior de cada uma de suas telas, fazendo-as depositárias de um feixe centrípeto de cores quentes. Não há aleatoriedade ou improviso, contudo, na realização dessas obras. Ainda que acolham e documentem, no espaço que o suporte delimita, o gesto expressivo do artista, obedecem todas a um processo de construção que subordina o que é gratuito ao que tece sentidos e o elogio da matéria ou da forma a procedimentos cognitivos.

O exame da morfologia dos trabalhos expostos revela, desde a primeira mirada, a principal característica desse processo: a superposição de inúmeras camadas de tinta e carvão sobre as telas sem que, no entanto, as camadas mais recentemente aplicadas obliterem totalmente a visão das que primeiro foram impressas sobre o suporte. Tal efeito palimpséstico é alcançado através das várias condutas construtivas adotadas pelo artista. Dentre estas, chama logo a atenção do olho o estreitamento gradual das pinceladas largas de tinta que inauguram cada obra, ao ponto destas se tornarem, na superfície das telas, mais traços que manchas e mais linhas que campos de luz. No momento de adelgaçamento mais acentuado da matéria pintada, o artista adiciona ainda riscos de carvão sobre o suporte, acentuando o progressivo desbaste do que fica como resíduo corpóreo de cada um de seus gestos. Embora os espaços pictóricos que iniciam as telas se deixem cobrir – através desse processo e uma vez findas as obras – por uma emaranhada malha gráfica feita de traços de carvão e tinta, esta estrutura é rarefeita o bastante para que os espaços de origem das pinturas não sejam por todo obstruídos.

Em outra das principais condutas de construção utilizadas, o artista quase nunca permite que o pincel encontre as telas encharcado com tinta: traz nele apenas a quantidade necessária para tornar visível, após áspero contato com o suporte, a sobreposição de planos que seus gestos repetidos engendram. Ao invés de matéria espessa e opaca, portanto, são rastros ralos de tinta deixados sobre as telas que marcam, por veladuras, o adensamento do espaço nessas pinturas. Adicionalmente, quanto maior o acúmulo de camadas pintadas mais tênue e mais breve se torna o contato entre pincel e suporte, enfatizando as transparências de que a pouca tinta usada já era prenúncio. Tampouco o carvão deixa funda sua marca: por meio de golpes rápidos desferidos pelo artista, ele toca as telas apenas o bastante para entranhar-se superficialmente nas suas fibras. A medida pretendida da espessura da mancha ou linha assim traçadas parece ser, portanto, aquele espaço mínimo de roçar entre suporte e matéria que, embora no limite do afastamento, ainda permite o registro inequívoco de seu encontro.

Nesse trajeto visível do campo ao traço e na crescente transparência da matéria aplicada sobre as telas – procedimentos em que se apóia a construção de cada trabalho exposto – habita uma investigação da temporalidade específica da pintura e da espacialidade virtual da superfície onde ela se gesta e define. Ao desvelar, através de sua corporeidade devassável, uma feitura em inúmeras camadas e em velocidade crescente, essas obras põem à mostra sua própria história, o fluir do tempo que permite sua existência como pintura. E é a esse tempo de fatura que se associa, até o instante exato em que cada trabalho termina, um progressivo deslocamento de planos, no qual camadas já pintadas recuam e se afastam da superfície da tela pela acumulação de outras tantas. Ficam gravadas como assunto nas obras de Manoel Veiga, desse modo, não apenas a própria duração do processo através do qual o artista as trama, mas também a extensão ilusória e movente dos espaços que sobre sua superfície inventa.


















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