MVHD
por Pedro França
Publicado no catálogo da exposição individual na Galeria Nara Roesler, São Paulo SP, 2010.
“As pinturas são realizadas no chão… O processo se inicia com a preparação de uma mistura cuidadosa de várias cores…única e muito fluida e que tem, inicialmente, uma só cor complexa… Ataco a tela, em seguida, com um pincel que mal a toca… passo a acompanhar a secagem da tinta, interferindo em determinados momentos, … apenas pulverizando água à distância, com o objetivo de criar gradientes de concentração que vão ser responsáveis pelo deslocamento dos pigmentos… os pigmentos mais leves são mais facilmente arrastados pela força de difusão e vão sendo separados dos mais pesados.”
Com gosto pela paródia, digamos que Manoel manipula a pintura e recusa habitá-la. Afinal, não são esses gestos que mal tocam a superfície da tela ações tangenciais, que se contentam em apontar vagamente o caminho da tinta? Nada do mergulho trágico daquele que pintava de “dentro” e, segundo Kaprow, “quase nunca saía da tela”. Manoel parece tomar posição um passo atrás, como um catalizador, deflagrador dos eventos na superfície da pintura. Controle remoto: dessa gávea (Pollock não tinha escada no ateliê) manipula com astúcia um processo abstrato, termo equívoco consagrado pela arte como não-figuração e pela ciência como antecipação. Estipula rigorosamente os limites do acaso. Com a experiência do comportamento dos materiais adquirida ao longo dos anos, aumenta a probabilidade de acerto (PF: acerto? qual o critério?). Com a introdução de novos problemas, e o abandono de respotas conhecidas, eleva o risco de fracasso (MV: quero a presença do movimento, e que o olho passeie sem paragens pelo espaço da pintura... não sei.).
High definition: O gesto articula sua própria negação: ( trabalho com um grau baixo de autoria). A tinta se espalha, as cores se destacam e o espaço se produz por difusão. Nada de pincel, nada de pixel à vista: espaço fluido, apenas, sem unidade material constituinte, imagem de um campo de imersão sem limites.
A fim de evitar os nós que prendessem o olhar na superfície, Manoel vinha, em pinturas anteriores, explorando as possibilidades de ocilação espacial do fundo. Por contraste, puxava-o para frente ou empurrava-o para trás das áreas coloridas. Suavizava ao máximo as passagens da cor ao branco, incorporando-o ao continuum cromático das áreas onde a tinta é depositada. Ao mesmo tempo, evitava que as bordas afirmassem exageradamente a presença física e bidimensional da superfície ao tocar seus limites. Nsses jogos óticos a materialidade da fatura, a opacidade do plano e a objetualidade do quadro tendem a ser abafados, ou reduzidos, privilegiando-se a concepção de um espaço luminoso, contínuo e profundo. Agora o trabalho volta a afirmar a existência desses três elementos, mas na tentativa de anulá-los por sua própria presença (lógica da vacina: inocular-se do veneno para combatê-lo): o fundo agora pode dobrar-se sobre a pintura (lógica da fagocitose, ou da pelinha transparente levantada na ponta do dedo) : as novas veladuras em branco não são feitas propriamente de tinta, mas da mesma matéria utilizada da preparação de tela. As bordas do quadro são provocadas por seu eco nos limites rígidos que ameaçam contornar formas (mas a cor fluida acaba sempre escapando e fundindo-se com o espaço em volta: lógica do ovo frito). E a pincelada retorna nos acabamentos, camuflada na tinta dispersa sobre a tela de modo a garantir fluidez geral do espaço (lógica da ilusão, do artifício, da imagem além do processo).
Não se trace para o projeto de Manoel uma genealogia apressada (MV, você conhece ML?). É impossível lidar com a visualidade vertiginosa destes trabalhos segundo antigos critérios modernistas. Solicita-se outro repertório, familiar, mas estranho à prática da pintura: vejamo-os como pintura de imagem, pintura-cinema-3d; pertencem à época da síntese visual dos telescópios, da coloração de reagentes induzidos por corantes, da super câmera lenta nos replays de futebol, dos gráficos animados de previsão do tempo, da espetacularização das imagens de síntese, da telepresença, dos protetores de tela dos computadores, da interpretação cromática da guerra e da modelagem impecável das novas atrizes digitais. Outras abstrações, enfim.